Bach recital in Sao Paulo, Brazil

2011-08-09 / O Estado de S.Paulo / João Marcos Coelho

Oitenta minutos de um Bach sublime, autêntico e pessoal

Desde o explosivo registro de Glenn Gould das Variações Goldberg em 1955, ficou difícil encontrar um lugar ao sol na música para teclado de Bach. Até Rosalyn Tureck, que gravara a obra anos antes, sentiu-se na obrigação de regravá-la pouco depois, em 1956. Quarenta e quatro anos mais tarde, outro clarão iluminou as Goldberg. Foi a gravação de 1999 da pianista inglesa Angela Hewitt (Hyperion). Gould se impusera pela liberdade nos andamentos e o tratamento de cada variação como mônade independente, com luminosidade própria (ele capou inclusive as repetições). Angela tomou o caminho inverso: construiu com elas um monumento orgânico, onde as partes têm direito a existência própria, mas estão sempre amarradas ao conjunto das 32 variações construídas sobre a linha do baixo. Evitou lançar-se numa corrida vertiginosa de tempos extremos, característica que desvirtua a obra desde que Gould impôs sua leitura genial, mas tão pessoal que não permitia imitação.

Foi a primeira vez que ela tocou no Brasil. E ouso pensar que se repetiu, na tarde de domingo, na Sala Paulo, a mágica da gravação doze anos atrás na Inglaterra: depois de cinco dias de trabalho no estúdio, Angela voltou ao hotel, tomou um banho e retornou para tocar informalmente as Goldberg a um grupo de amigos. Felizmente o técnico registrou a performance, logo escolhida para o lançamento comercial.

Igual mágica se produziu diante de nossos olhos e ouvidos. Como Gould, mas menos extrovertida, ela ensaia reger alguns compassos com uma mão quando só a outra toca. Mas as semelhanças param por aí. Ela faz todas as repetições – o que dobra o tempo, de cerca de 40 para 80 minutos. E isso faz uma diferença danada, pois faz emergir a arquitetura da obra. Uma hora e 20 de perfeição estilística, ornamentação precisa mas nunca burocrática, fidelidade à partitura (algo que Gould não teve à disposição, já que somente em 1974 descobriu-se um manuscrito autógrafo de Bach com indicações de tempos), profunda expressividade e domínio técnico. Ela não hesita em usar o pedal quando necessário, mas constrói legatos sem ele com rara elegância.

Eletrizado, o público viajou” nas Goldberg; cantou junto na escrita espantosamente romântica da “pérola negra”, a célebre variação 25, assim batizada por Wanda Landowska, a primeira a gravar a obra em 1933 no cravo. Angela a executa em tempo lento, Adagio, marcação do próprio Bach; impactou-se com o virtuosismo das variações em estilo toccata: a 17 e sobretudo a 20, que a pianista classificou de “a mais perigosa de todas as toccatas”, no belo texto que assina no CD da Hyperion, mas executa no dobro do tempo de Gould, bem mais diabólico; assistiu boquiaberto aos entrecruzamentos de mãos nas variações 8, 11 e 26. E o que dizer dos mordentes da variação 14 que passeiam por toda a extensão do teclado, alternando-se as mãos?

Enfim, raros 80 minutos de Bach sem que nada parecesse postiço ou fora do lugar. Por isso, ela é com justiça a “senhora Bach”.”